13/10/2020
Por Renan Almeida e Guilherme Checco
O novo marco legal do saneamento básico, recentemente aprovado (Lei Federal 14.026/20), criou um novo dispositivo que impede a distribuição de lucros e dividendos das empresas de saneamento que não cumprirem as metas postas nos respectivos contratos. Inclusive, há de se lembrar, a nova legislação estabelece um novo acordo social traduzido na meta de universalização até 2033, com 99% da população com acesso à água potável e 90% para esgotamento sanitário. Ocorre que a regulação e fiscalização destes prestadores, à luz dos contratos e dos planos de saneamento, são feitos pelas agências reguladoras, atores centrais para o avanço adequado desse direito humano em todo o país. De modo que a 2ª revisão tarifária periódica da Copasa (empresa estadual de saneamento de Minas Gerais) atualmente em curso, conduzida pela Arsae/MG (Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais), representa uma janela de oportunidade para aprofundar esse debate e desvendar como esse novo dispositivo legal será incluído e como a regulação econômica e definição da tarifa podem ser incentivos para o avanço inadiável e urgente rumo à universalização do acesso e a prestação de um serviço de alta qualidade que preze pela gestão sustentável das águas.
Esses aspectos foram o centro das atenções do Seminário “Investimentos, Distribuição de Dividendos e Universalização”, realizado em 31 de agosto em parceria com o IDS e o Instituto Guaicuy, organizações que estão organizando um conjunto de debates com vistas à reunir diferentes saberes e contribuições e construir uma agenda estruturada e aprofundada de contribuições a serem apresentadas à Arsae, no âmbito da 3RTP da Copasa.
A revisão tarifária periódica é o instrumento regulatório pelo qual se define o valor, a composição e a distribuição das tarifas dos prestadores de serviços para um ciclo, em geral, de quatro anos. As revisões são estruturalmente muito mais relevantes do que os reajustes, que visam apenas recompor anualmente os efeitos inflacionários sobre as tarifas definidas nas revisões. A Arsae-MG está iniciando a 2ª revisão da companhia mineira, a ser concluída em junho de 2021.
O segundo evento desse ciclo de debates contou com a abertura de Guilherme Checco, Coordenador de Pesquisas do IDS, mediação de Renan Almeida, professor na Universidade Federal de São João del Rei e ex-gerente da agência reguladora Arsae-MG, e apresentações da profª. Ana Lúcia Britto (UFRJ e ONDAS) e Procuradora Sandra Kishi do Ministério Público Federal-SP e coordenadora do projeto Conexão Água, iniciativa do próprio MP que busca colaborar para a melhoria da qualidade e quantidade das águas no Brasil.
Conforme assinalado no debate anterior por Léo Heller (Fiocruz e ONU) e Gustavo Gastão (consultor em Regulação e ex-Diretor Geral Arsae), dadas as receitas vindas das tarifas pagas pelos usuários e as estruturas de custos da prestação dos serviços, as companhias de saneamento são lucrativas em geral.
Parte desses lucros poderia ser reinvestido nas próprias companhias, o que possibilitaria um avanço em direção à universalização dos serviços – cerca de 100 milhões de pessoas não tem acesso a esgoto tratado e cerca de 35 milhões não tem acesso à água tratada no Brasil, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), referentes a 2018. Entretanto, há companhias que têm decidido distribuir mais lucros na forma de proventos (dividendos e Juros sobre Capital Próprio, JCP), ao passo que os investimentos para a universalização avançam lentamente, inviabilizando as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Saneamento (PlanSab) em 2013 com o horizonte de 2033. Embora não se deva desprezar os avanços dos períodos anteriores – entre 2007 e 2017 o número total de ligações de água cresceu 48% e de esgoto 72% e, além disso, o volume de esgoto tratado cresceu 63% – o fato concreto é que a gestão de parte das companhias vem privilegiando a visão dessas empresas como geradoras de valor para acionistas em detrimento da universalização.
No caso específico da Copasa, a companhia teve receita líquida de R$1,18 bilhões no 2º trimestre de 2020 e mais de R$5 bilhões nos últimos 12 meses, lucrando R$146 milhões nesse último trimestre e mais de R$750 milhões nos últimos 12 meses com dados disponíveis. Foram distribuídos cerca de R$90 milhões em proventos (JCP) só este ano, e mais de R$1 bilhão na soma dos exercícios de 2019, 2018 e 2017, inclusive, com distribuições extraordinárias (além do mínimo obrigatório definido em lei) ao longo desse período. Ao mesmo tempo, os investimentos da companhia vem caindo, com valores inferiores à cota de depreciação em alguns anos, e, segundo a própria Arsae-MG, “até novembro de 2019, apenas 1 dos 581 municípios operados pela Copasa cumpria as metas de abrangência no abastecimento de água estipuladas pelo Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico) para 2018”.
Diante desse panorama, o professor Renan Almeida contextualizou essa questão para o passado recente da Copasa, e em seguida, trouxe para o centro do debate a nova redação do Art. 11 da Lei 11.445/07 que o novo marco legal do saneamento determina: “§ 5º Fica vedada a distribuição de lucros e dividendos, do contrato em execução, pelo prestador de serviços que estiver descumprindo as metas e cronogramas estabelecidos no contrato específico da prestação de serviço público de saneamento básico”. Com base na nova lei federal, fica claro que alguma forma de regulação é possível e permitida a respeito deste assunto, embora não fique explícito de qual ator seria a responsabilidade para intervenção nesse domínio e qual regra específica deveria ser formulada.
Em sua exposição, a profª Ana Lúcia Britto partiu de uma consideração sobre a ausência de uma política de saneamento clara no governo eleito em 2018. A partir desta constatação, Britto identificou igualmente uma mudança no perfil de acesso aos financiamentos públicos ao setor. Segundo a profª da UFRJ, ao longo dos últimos anos mais prestadores privados vêm acessando recursos públicos (FAT/BNDES e FGTS) ao passo que prestadores públicos ou mistos têm perdido participação. Nesse contexto, ela destacou que o argumento da falta de recursos públicos para ampliar investimentos não procede no sentido de que os investimentos privados em saneamento também são realizados, em grande medida, a partir de recursos públicos. Em seguida, ela apontou como a abertura de capital das empresas estaduais teve efeitos sobre a gestão dessas companhias, com uma crescente participação do setor financeiro (que ela como “financeirização”) na composição acionária das empresas. Esse aumento, na sua visão, tende a aprofundar uma gestão voltada para as áreas geográficas superavitárias e menos investimentos para a universalização.
A procuradora Sandra Kishi retomou o entendimento de que a água não é mercadoria, fato reconhecido, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal. Essa visão normativa também é referendada internacionalmente, como nos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis) e nas normas internacionais assinadas pelo Brasil (como na Convenção de Estocolmo). Nesse sentido, ela destacou que a gestão das empresas de saneamento, independente se públicas ou privadas, é responsável direta pelo atendimento aos princípios legais na prestação dos serviços, incluindo aí a dimensão de direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário.
Além disso, Kishi também destacou que os entes reguladores têm responsabilidade de atuar sobre essas práticas dos prestadores, já que a regulação precede à tomada de decisões das companhias. Dessa forma, tanto os reguladores quantos os gestores podem e devem ir além da questão do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, e garantir a dimensão ecológica-social na prestação dos serviços. A Procurada ressaltou também o arcabouço jurídico que fundamenta a vedação da distribuição de dividendos, encontrando alicerce na Lei das Licitações (8.666/1993) e na Lei das PPPs (11.079/2004). Ao longo do debate, Checco, Coordenador de Pesquisas do IDS, trouxe a interessante questão de que a lei 14.026/2020 fala de uma espécie de “semi-universalização” ao estabelecer metas de 90% de atendimento de esgoto tratado e 99% de água tratada ao invés de 100%. Essa provocação abriu caminho, junto com a questão da distribuição de dividendos, para a profª Ana destacar que é fundamental a sociedade estar atenta à regulamentação da lei, pois ela é muito genérica e vaga em vários pontos. Do ponto de vista de planejamento, inclusive, ela afirma que causa estranheza uma lei federal que tem a pretensão de cravar metas quantitativas para o conjunto do território nacional, tão díspar.
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O ciclo de debates realizado pelo IDS em parceria com o Instituto Guaicuy para tratar da 2a revisão tarifária da Copasa, empresa de saneamento em Minas Gerais, teve seu primeiro encontro dia 31/7. A ONU estabeleceu o acesso à água potável e #saneamento básico como dois direitos humanos, presentes nos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável – ODS 6 da Agenda 2030. Acesse nossa página de Segurança Hídrica e saiba mais.
O Instituto Guaicuy tem como missão incentivar o diálogo entre saberes populares e conhecimentos científicos, trabalhando de forma interligada ao protagonismo popular na defesa das águas como bem comum.
O segundo seminário, que aconteceu em 31/08 está disponível em nosso canal do Youtube – Acesse abaixo:
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