02/09/2019
Artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo, em 30/08/2019.
O agronegócio brasileiro enfrentará grandes desafios nos próximos anos. Serão tempos de turbulências causadas pelo chamado “fogo amigo”, ou seja, por seus próprios pares.
Depois do salto propiciado por um ciclo vitorioso de desenvolvimento no campo que permitiu superar seu desenvolvimento tardio, o Brasil deixou a posição de importador de alimentos para se tornar um dos mais dinâmicos produtores e exportadores de produtos da agropecuária do mundo. A produtividade cresceu a uma taxa anual média de 3,43% nos últimos 42 anos, muito superior à americana de 1,38% ao ano. Nesse mesmo período, a produção de grãos saltou de 40,6 milhões para 237,8 milhões de toneladas, contribuindo para garantir o equilíbrio da balança comercial do país.
Essa façanha que colocou o agronegócio brasileiro na vanguarda da produção mundial se deu, no caso da produção de grãos, em parte pela incorporação das chamadas tecnologias cristalizadas, aquelas que estão nas sementes melhoradas, equipamentos de precisão e insumos mais eficientes. Para os maiores especialistas na área, entretanto, mais importante do que elas foram as tecnologias conhecidas como não cristalizadas, ou não materializadas em produtos de prateleira. Para Eliseu Alves, um dos fundadores e ex-presidente da Embrapa, “o conhecimento sobre sistemas de produção impactou mais a agricultura brasileira do que equipamentos, máquinas e sementes”.
Esse é uma questão central que deve ser considerada quando discutimos o futuro da agropecuária no Brasil. As tecnologias que tratam dos modelos de produção inovadores como o manejo de pragas, plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta e outras técnicas de agricultura de baixo carbono, por exemplo, são produzidas pelas instituições de pesquisa e encontram dificuldades para chegar ao seu destinatário no campo. Principalmente quando as limitações orçamentárias afetam seu desenvolvimento e a extensão rural.
O desafio do setor, que se encontra no limiar de ruptura com os atuais sistemas de produção no campo devido à pressão da sociedade, está na incorporação dos novos padrões sustentáveis de produção e não simplesmente no uso de algum insumo milagroso ou máquina ultra moderna. A cada dia se exige maior conhecimento e respeito às condições de produção de nossos espaços naturais, que inclui o solo, o clima, as fontes de água e a biodiversidade e o melhor aproveitamento do solo que já foi disponibilizado para a agropecuária pela remoção da cobertura vegetal original. Há milhões de hectares nessa condição que estão subutilizados, enquanto o desmatamento segue em ritmo extremamente acelerado, como é o caso da pecuária extensiva, responsável por cerca de 80% do desmatamento e uma produtividade muito baixa, de apenas uma cabeça animal por hectare.
A boa notícia é que há muitos atores no campo que já incorporaram a dimensão da sustentabilidade e avançam de forma consistente rumo a uma agropecuária de altíssima produção e compatível com a conservação ambiental. Sistemas de rastreamento da produção, responsabilização pela cadeia de custódia, controle biológico de pragas, combate ao desmatamento, recuperação de áreas degradadas, adesão a programas de redução de emissões e, principalmente, investimentos muito bem sucedidos no aumento da produtividade, passaram a caracterizar parte importante da nossa produção.
A má notícia é que a parcela dos produtores que insiste em ficar no passado está super-representada no Congresso Nacional e no próprio governo federal. Projetos de Lei, Medidas Provisórias e pronunciamentos equivocados surgem quase todos os dias, comprometendo a credibilidade do agronegócio como um todo e a própria segurança jurídica necessária à produção. No futuro muito próximo, poderão comprometer, também, o acesso ao mercado internacional, onde os consumidores, cada vez mais exigentes, pressionam seus governos a não compactuarem com a degradação socioambiental.
A solução para esse impasse não está só em Brasília. Está sobretudo no próprio setor. Mais do que pronunciamentos de suas lideranças esclarecidas em prol da produção sustentável, é urgente que os produtores rurais que já incorporaram padrões socioambientais avançados, adotem metodologias de certificação de alta credibilidade para mostrarem que seus produtos não são oriundos de processos social e ambientalmente predatórios. Os setores de papel e celulose e biocombustíveis já estão avançando nessa direção. Falta ao conjunto dos produtores rurais responsáveis mostrarem à sociedade a diferença entre o joio e o trigo da agropecuária brasileira.
Aos governos cabem, além do papel de indutor da modernização do setor, combater a cultura da impunidade que funciona como um poderoso vetor de desincentivo à inovação e de descumprimento da legislação ambiental. Programas como o de Agricultura de Baixo Carbono (ABC) e o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia precisam ser recuperados e fortalecidos. Produtores certificados por suas boas práticas não podem ser sabotados no mercado pela competição com aqueles que praticam dumping socioambiental.
É chegada a hora do segmento mais moderno e responsável do agronegócio mostrar as suas diferenças e estabelecer uma agenda propositiva envolvendo governo, academia e ambientalistas, onde todos ganhem. Um agronegócio econômica, social e ambientalmente sustentável é interesse de todos os brasileiros. Os que se opõem a essa agenda, ainda que discursem em favor do setor, investem contra ele e se configuram como os verdadeiros inimigos do desenvolvimento do país.
Marina Silva, ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008), e João Paulo Capobianco, doutor em ciência ambiental e ex-secretário de biodiversidade e ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente (2003-2008).
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