16/10/2017
As lideranças do agronegócio tentam criar um antagonismo falso entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico. Por trás dessa tentativa existe, na verdade, o objetivo principal do setor que é o de acabar com qualquer regulação sobre as propriedades rurais. A avaliação é de Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA) e integrante do Conselho do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).
O primeiro capítulo dessa estratégia dos ruralistas foi a mudança no Código Florestal, aprovada em 2012, que reduziu o alcance dos instrumentos de preservação florestal e anistiou os produtores que desmataram ilegalmente até julho de 2008. Esforço que incluiu, posteriormente, “a paralisação da demarcação de terras indígenas, a alteração da lei trabalhista no campo, a mudança da legislação do uso de agrotóxico”.
Segundo Adriana Ramos, trata-se de “uma visão que não reconhece a importância da conservação de florestas para o desenvolvimento”. Os ruralistas acusam “os ambientalistas de serem obscurantistas e radicais, contra o desenvolvimento” para não terem de “discutir, por exemplo, o impacto da mudança do Código Florestal sobre a questão da crise hídrica”, afirma.
Está marcada para esta quarta-feira (11), a retomada do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) das quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que questionam 58 dispositivos do novo Código Florestal. “A gente espera que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade de alguns dispositivos e reponha o grau necessário de proteção das Áreas de Preservação Permanente, já que as mudanças não tiveram nenhum embasamento científico.”
A ambientalista contesta os argumentos dos que afirmam que a declaração de inconstitucionalidade pelo STF criaria insegurança jurídica e inviabilizaria os avanços do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e do PRA (Programa de Regularização Ambiental). “Nenhuma das quatro ações de inconstitucionalidade questiona qualquer um dos dispositivos que tenha a ver com a criação do CAR ou do PRA. A única coisa que vai acontecer, se os dispositivos forem considerados inconstitucionais, é que as regras sobre Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal voltam a ser as que existiam antes.”
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No início da sessão no STF de 14 de setembro, o ministro Luiz Fux disse ver a disputa judicial sobre o novo Código Florestal como um confronto nítido entre os que querem a proteção “estrita” do meio ambiente e os que, além dessa proteção, querem também o desenvolvimento econômico. Como você analisa essa fala do ministro?
A tentativa de colocar essas duas coisas como oposição aconteceu durante todo o processo de discussão do Código Florestal. É uma visão que não reconhece a importância da conservação de florestas para o desenvolvimento. Em nenhum momento se está falando contra o desenvolvimento. A discussão do Código foi pautada com um viés totalmente diferente do objetivo da lei. Trata-se de uma lei de proteção de florestas. Mas o que motivou a alteração do Código Florestal foi um interesse de um setor específico, o agronegócio, que se utilizou muito dessa roupagem sobre a questão do desenvolvimento, mas que na verdade puxou toda a discussão para a questão do direito da propriedade. Acho que essa é uma questão central.
Isso fica muito claro quando você analisa a dinâmica que esse setor assumiu em relação a mudanças na legislação, em que o Código Florestal foi apenas uma delas. É uma estratégia muito maior que inclui a paralisação da demarcação de terras indígenas, a alteração da lei trabalhista no campo, a mudança da legislação do uso de agrotóxico. Não há nenhuma comprovação objetiva de que essas mudanças vêm para ampliar a perspectiva de desenvolvimento. A nós parece que é uma visão muito mais tacanha de tirar qualquer tipo de regulação do caminho, de tal maneira que o direito de propriedade seja exercido de uma forma plena, sem regulação, “na minha propriedade eu faço o que eu quiser, uso o agrotóxico que eu quiser, na quantidade que eu quiser, conservo o tamanho de área que eu quiser”. E, além disso, “produzo o que eu quiser”, porque agora na última versão do projeto da Lei Geral de Licenciamento o setor pede a isenção total de licenciamento para qualquer atividade agrossilvipastoril.
A discussão sobre o novo Código Florestal teria iniciado essa estratégia.
Sim. Foi a primeira lei na qual o setor conseguiu impor essa visão contra a regulação. É um discurso que acusa os ambientalistas de serem obscurantistas e radicais, contra o desenvolvimento. Com isso, não precisam discutir, por exemplo, o impacto da mudança do Código Florestal sobre a questão da crise hídrica, discutir o fato de a crise hídrica acontecer em um país em que mais de 70% da água é utilizada pelo setor do agronegócio.
Qual a importância das quatro ações de inconstitucionalidade contra a Lei 12.651/2012, que instituiu o novo Código Florestal?
Além de reduzir o alcance dos dois principais instrumentos de proteção ambiental, que são as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal, a mudança no Código Florestal beneficiou quem desmatou ilegalmente, prejudicando, de certa forma, todos aqueles que cumpriram a lei.
Você classifica como anistia o tratamento dado aos que desmataram ilegalmente?
Com certeza, pois você está liberando essas pessoas do pagamento de multa e da obrigação de recompor o dano criado.
A advogada-geral da União afirma que não se trata de anistia, pois eles terão de refazer áreas desmatadas.
Eles vão ter de refazer em níveis muito menores e, em alguns casos, não vão ter de refazer nada. Se você diminuiu o tamanho da APP, a obrigação de recompor a vegetação, de acordo com a nova lei, é menor do que era anteriormente. Cada um pode interpretar a palavra anistia como quiser, mas não temos qualquer dúvida de que o novo Código liberou essas pessoas de pagar multa e de cumprir obrigações instituídas pela lei. Portanto, anistiou sim.
Quais das quatro ações de inconstitucionalidade são mais relevantes?
As ações questionam 58 dispositivos e praticamente todos eles dizem respeito ao tamanho das Áreas de Preservação Permanente e ao cumprimento da obrigação de manter a Reserva Legal. Então são diferentes dispositivos que vão alterando a exigência em relação a esses dois instrumentos e reduzindo essa exigência.
A mudança provocada pelo novo Código foi maior nas Áreas de Preservação Permanente ou na Reserva Legal?
Maior nas Áreas de Preservação Permanente. Isso é curioso, porque quando começou a discussão das mudanças, uma das coisas que se alegava era de que o Código Florestal tinha muitas variáveis e ele era inaplicável. Ninguém conseguia olhar uma paisagem e saber o tamanho que aquela APP deveria ter. Eles fizeram o Código novo com um negócio que eles chamaram de “escadinha”, que tem mais variáveis ainda do que tinha antes, pois além das variáveis já existentes, agora tudo depende do tamanho da propriedade, de quantos módulos fiscais tem etc. Tudo é muito mais complexo do que era. Uma das justificativas para a lei era torná-la mais simples, para facilitar sua aplicação, mas ficou muito mais complicada.
Defensores do novo Código Florestal argumentam que a aprovação das ações diretas de inconstitucionalidade no STF criariam uma situação de insegurança jurídica muito grande. Tudo o que já se conquistou com o CAR (Cadastro Ambiental Rural) e o PRA (Programa de Regularização Ambiental) estaria inviabilizado.
Isso é uma mentira, não faz o menor sentido. Nenhuma das quatro ações diretas de inconstitucionalidade questiona qualquer um dos dispositivos que tenha a ver com a criação do CAR ou do PRA. Nada do que está nesses instrumentos é questionado. A única coisa que vai acontecer, se os dispositivos forem considerados inconstitucionais, é que as regras sobre Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal voltam a ser as que existiam antes.
E o que isso significa na prática?
Significa que o programador do sistema do CAR vai ter de entrar lá e dizer que a metragem, em vez de ser X, vai ser 2X para calcular a Área de Preservação Permanente. É uma mudança técnica num dos parâmetros do sistema que não vai alterar em nada o esforço já feito de cadastramento. Além disso, não terá nenhum impacto, uma vez que os cadastros ainda não estão validados. Então não tem impacto nenhum sobre CAR e PRA. Ninguém está pedindo para voltar atrás na instituição do sistema. A única coisa que você vai ter de fazer é uma adequação técnica no ajuste das metragens para leitura que o sistema vai fazer sobre o que é obrigatório ou não em termos de Áreas de Preservação Permanente.
Quais as próximas batalhas dos movimentos socioambientais?
A gente objetivamente espera que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade de alguns dispositivos e reponha o grau necessário de proteção das Áreas de Preservação Permanente, já que as mudanças não tiveram nenhum embasamento científico. Fora isso, vamos continuar batalhando para que a aplicação da legislação aconteça da melhor forma possível e também contra os retrocessos, que continuam em discussão.
Você inclui entre os retrocessos a proposta em tramitação da Lei Geral de Licenciamento?
Sim. É um absurdo você considerar, por exemplo, que o plantio de espécies exóticas seja uma atividade de baixo impacto ambiental. O que está se fazendo é o desmonte total dos parâmetros ambientais que fizeram com que o Brasil fosse reconhecido como um país com uma das melhores legislações ambientais do mundo. E aí a gente vai continuar nessa luta. E na luta para evitar a redução dos direitos das comunidades, como é o caso dos quilombolas, dos indígenas.
Estava assistindo ontem mais uma vez “Martírio,” o filme do Vincent Carelli. Tem um trecho grande que exibe o chamado “Leilão da Resistência”, um evento feito pelos ruralistas no qual compareceram as principais lideranças do setor. A Kátia Abreu aparece e diz que o objetivo do leilão é captar recursos para aumentar a segurança privada das fazendas. E diz que, depois de mudar o Código Florestal, eles vão seguir a agenda estratégica deles. Ela fala que vão paralisar o processo de demarcação de terras indígenas, paralisar o processo de demarcação de territórios quilombolas, mudar o licenciamento ambiental, mudar a legislação trabalhista no campo…. É uma estratégia.
Você se lembra de um período tão marcante em termos de retrocessos socioambientais?
Não. Estes anos, a partir da aprovação do Código Florestal em 2012, têm sido os de maior impacto sobre a agenda socioambiental.
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GLOSSÁRIO
Área de Preservação Permanente
Área localizada às margens de nascentes e dos corpos de água, nas encostas e no topo de morros. Tem a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
Reserva Legal
Parcela de uma propriedade rural que deve ser mantida com vegetação nativa. O percentual varia de acordo com o bioma no qual está localizada. Em áreas de florestas na Amazônia Legal, por exemplo, corresponde a 80% do imóvel. No Cerrado, esse percentual é de 35% e, em área de campos gerais, de 20%.
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Cadastro Ambiental Rural – CAR
Registro público eletrônico, obrigatório, dos imóveis rurais. A inscrição no CAR contempla informações georreferenciadas do imóvel que incluem a localização dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Preservação Permanente, das Reservas Legais, das Áreas de Uso Restrito e das Áreas Consolidadas. É o primeiro passo para a obtenção da regularidade ambiental do imóvel.
Programa de Regularização Ambiental – PRA
Depois de inscritos no CAR (Cadastro Ambiental Rural), os proprietários de imóveis com passivos ambientais _relativos às Áreas de Preservação Permanente, às Reservas Legais e às Áreas de Uso Restrito_ poderão proceder à regularização ambiental por meio dos Programas de Regularização Ambiental, executados pelos governos estaduais.
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Publicado originalmente no blog "Mais Democracia, Mais Sustentabilidade", no site do Estadão. Confira aqui
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