Superação das desigualdades e direitos humanos: como construir cidades mais democráticas e sustentáveis?

25/02/2022

IDS em parceria com o TETO realiza o terceiro encontro da série de debates “Espaços de Ativismo

Por Aline Souza – jornalista e comunicadora no IDS

Reconhecer a proteção à dignidade de todos os seres humanos, de forma universal, inalienável e indivisível é um princípio central para a promoção dos Direitos Humanos, algo que está intimamente ligado à Democracia, uma vez que ela é um dos alicerces para uma vida mais justa, com menos desigualdades. Ela é também condição para que o Brasil alcance um novo patamar de desenvolvimento e bem-estar no futuro. Diante do cenário atual que temos visto, com constantes ataques à democracia, é urgente debater sobre os diferentes tipos de ativismos e conectar diferentes gerações que estão à frente da luta por esses direitos que estão sempre em movimento no tempo e no espaço.

É por essas razões que acreditamos que democracia e direitos humanos, além de todas as questões transversais aos dois conceitos, como as desigualdades, a sustentabilidade e a cidadania, devem ser debatidas sob uma perspectiva intergeracional. No dia 24 de fevereiro o IDS realizou o terceiro encontro da série de debates “Espaços de Ativismo” com o tema Superação das desigualdades e direitos humanos: como construir cidades mais democráticas e sustentáveis? com transmissão ao vivo pelo Youtube do IDS.

Algumas questões relevantes nortearam esse debate:

– Qual foi o papel da juventude, a partir da segunda metade do século passado, na construção de um movimento pelos direitos humanos, antes e depois da redemocratização brasileira na década de 1980? Quais foram os desafios no passado e quais são os de hoje?


– Quais são os principais desafios e oportunidades de ação para a juventude e como aproximá-la desse debate? Qual é o lugar da democracia e da sustentabilidade nesse desafio?

Para responder e trazer mais reflexões sobre o tema nesse debate intergeracional, o IDS convidou a TETO Brasil, que trabalha pela construção de um país mais justo e sem pobreza.

A TETO mobiliza jovens voluntários (as) para atuar lado a lado em comunidades precárias de diferentes Estados, proporcionando melhorias nas condições de moradia e habitat destes territórios. É imperativo que se preocupe com a ocupação dos territórios de forma a corrigir as profundas desigualdades e injustiças sociais historicamente construídas e assim construir uma realidade urbana onde o direito a cidades sustentáveis seja assegurado. Esse direito é central, pois engloba diversos elementos dos direitos humanos: desde os direitos individuais às condições de vida digna, à identidade, à moradia; passando por direitos coletivos como o acesso a serviços como transporte, acesso à internet, saúde e educação; e chegando aos tão importantes direitos difusos ao meio ambiente, à gestão urbana adequada e à sustentabilidade; todos eles indivisíveis entre si e indispensáveis para a efetivação da cidadania para esta e às futuras gerações.

Só no Brasil, de acordo com dados do IBGE, o acesso à água, ao saneamento e a condições de vida ambientalmente seguras é negado a muitos: 15,1% da população vive em ambiente sem abastecimento de água; 35,9% é afetada pela falta de coleta de esgoto; e ainda 9,7% não contam com coleta de lixo.

Com a mediação de Camila Jordan, Diretora Executiva da TETO Brasil, vamos promover uma roda de conversa sobre direitos humanos e cidades sustentáveis com a presença de convidados de peso!

  • Ana Valéria Araújo, superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos e associada IDS;
  • Gabriel Sampaio, Coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional e de Litígio Estratégico da Conectas Direitos Humanos;
  • Juliana Moura Bueno, especialista em políticas públicas de direitos humanos;
  • Anna Luísa Beserra, Fundadora e CEO da SDW.

Carolina Mattar, coord. executiva do IDS, fez a abertura contando sobre a sua vontade de ver a juventude intervir mais na realidade que nos toca. Ela lembrou que a Carta Universal dos Direitos Humanos, a Nova Agenda Urbana (NAU) e também o Acordo de Paris são tratados importantes para o avanço civilizatório da humanidade que ainda encontram muita resistência para serem implementados. “Eis o grande paradoxo de nosso tempo. E não há tempo a perder, aprender com o passado e unir esforços para construir o futuro. É na cidade onde acontece a vida pública e por meio da ação local que a distancia entre discurso e prática pode ser reduzida”, afirmou.


Camila Jordan, como mediadora, lembrou que esse debate é muito importante para pensarmos como sociedade qual é o Brasil que queremos construir e quais as prioridades que queremos abraçar. Não é suficiente votar nas eleições a cada quatro anos, pois democracia e direitos humanos é mais que isso, cidadania é algo que precisa ser vivido todos os dias. O debate trás diferentes perspectivas, o que reforça o fato de que a sociedade civil tem uma responsabilidade muito grande para construir essa nova realidade que é urgente.

Acompanhe as principais contribuições para esse debate e assista também a transmissão completa abaixo.

Gabriel Sampaio – A luta é antiga

Durante sua fala Gabriel destacou a nossa incapacidade de construir democracia no Brasil com o histórico de racismo estrutural que permeia a nossa sociedade e que ainda hoje é negado por muitos. De acordo com ele, é triste perceber que ao longo de gerações fomos perdendo a oportunidade de aproveitar todo nosso potencial enquanto país novo, jovem, recente, com a dizimação de populações e com o futuro roubado de gerações inteiras.

Ele lembrou que foram quatro séculos de escravidão e isso deixa marcas profundas em nosso DNA social até hoje, produzindo uma desigualdade histórica que nos torna incapaz de implantar e manter os direitos humanos mais básicos. Ao contrário, o país retrocede e evita enfrentar esses desafios históricos de forma plena. “A Revolução Francesa, que levantou os valores de liberdade, igualdade e fraternidade, fundando o estado democrático de direito, aconteceu na mesma França que até outro dia tinha o Haiti como colônia no modelo escravocrata. Ou seja, a democracia modelo não é exemplo para ninguém, pois me parece que não pode ser aplicada a todos. A juventude do Haiti foi fundamental, eles sim fizeram uma verdadeira revolução, promovendo uma grande rebelião de escravos tornando o Haiti o único país das Américas que conquistou sua independência a partir de uma rebelião de escravizados contra o modelo colonialista”, explicou.

Gabriel mencionou o projeto autoritário e a violência institucional que segue matando no Brasil. A taxa de homicídio de pessoas negras é de 75%, índice que vem sendo apontado há mais de uma década segundo ele. “Como podemos afirmar a existência de democracia e um projeto universal de sociedade em um país cujas gerações inteiras são perdidas assim? Até quando vamos continuar perdendo tempo com questões que já deveriam ter sido superadas perante os desafios que são ainda maiores e globais como a emergência climática que está diante de nós? Nossas cidades estão completamente vulneráveis a isso e todos nós estamos correndo sérios riscos em manter o atual modelo de vida. Existe um enorme problema habitacional no Brasil com moradias instáveis e inseguras onde a maior parte das pessoas negras reside”, questiona Sampaio.

“Não podemos deixar para as futuras gerações uma tarefa que é emergente. E só a juventude pode impor essa visão fraterna que precisamos para enfrentar esses desafios. É hora de nossa sociedade afirmar que nós só seremos capazes de construir um projeto de democracia real e efetiva, justa e igualitária se enfrentarmos essas desigualdades que nos assolam e as marcas do racismo estrutural que remontam aos tempos coloniais de outrora”, disse ele.

Gabriel é Coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional e de Litígio Estratégico da Conectas Direitos Humanos.

Juliana Moura Bueno – Uma foto ou um filme?

“Estamos aqui para debater os temas da inquietude de nossa geração”, disse Juliana ao iniciar sua participação. Para ela, tornar os direitos humanos enquanto prática e não só uma carta assinada após um período de guerras na humanidade é algo que ainda não se realizou na vida cotidiana. “Precisamos olhar para o tema e existem dois caminhos, o primeiro é ver como uma foto, o segundo é ver como um filme. Se for como foto, o nosso tecido social comprova que é a pior foto desde a ditadura militar. Como filme, existem três atos importantes”, explicou.

Segundo Juliana, no breve resgate que ela traçou, o primeiro ato começa com a promulgação da Constituição de 1988, que ainda não trás a institucionalidade dos direitos humanos incorporada no seu léxico, mas inclui algumas premissas importantes. No governo de FHC tivemos a construção de dois grandes Planos Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) em 1997 e em 2002. Com isso o Brasil foi o terceiro país do mundo a apresentar esses documentos realizados com conferências nacionais, incorporando assim a participação social.

O segundo ato foi a pressão social que resultou em sensibilização política e na criação de três secretarias em 2005 com status de ministérios: a secretaria de direitos humanos, secretaria de políticas para igualdade racial e secretaria de políticas para mulheres da Presidência da República. O PNDH 3 é criado como a grande Carta Magna para o Brasil com as diretrizes centrais sobre como serão feitas as políticas públicas para educação, saúde, meio ambiente, justiça e bem estar social, etc. Uma visão utópica sobre a sociedade que deveria existir.

O terceiro ato se abre com o rebaixamento dos Direitos Humanos em outubro de 2015 com a Reforma Administrativa realizada pela presidência, que sofreu pressão para reduzir os investimentos em políticas sociais e com a máquina pública e com isso reduziu em 25% a estrutura dessas três secretarias. A participação social passou a ser desestimulada e os espaços foram também reduzidos como os Conselhos da Sociedade Civil. Ocorreu um recuo civilizatório sem precedentes que culmina no cenário que temos hoje. Para Juliana, o filme não é só a foto de hoje. “O momento é de fragilização institucional, porém precisamos olhar para o futuro. Devemos pensar em cidades sustentáveis e um país democrático e sustentável a partir de ferramentas coletivas para que as conquistas tenham mais força e sejam realmente sólidas”, disse.

Juliana é especialista em políticas públicas de direitos humanos.

Anna Luísa Beserra – Fazer chegar o saneamento onde os olhos não vê

Direto de Salvador – BA, Anna Luisa contribui com sua experiência mais na ponta onde os direitos humanos chegam ou não chegam. Ela inicia sua participação lembrando da vivência com a seca no seminário do Brasil. Criadora do projeto Aqualuz, em 2013, uma experiência inovadora para o tratamento da água usando o sol, tecnologia que é diferente de todas que existem com durabilidade de 20 anos e a manutenção simples, Anna lembrou que a cada real investido, R$ 14 retornam para a sociedade em forma de saúde, qualidade de vida e capacidade produtiva. “Investir em saneamento é ajudar o país crescer mais rápido. Mas na pratica ninguém quer fazer isso. Só no Brasil são cerca de 100 milhões de pessoas sem saneamento básico. Há muito a ser feito. Falta investimento e vontade politica”, afirmou.

Importante destaque feito por ela foi sobre o cotidiano das famílias que vivem essa realidade de falta de água limpa, principalmente na rotina das mulheres que ainda são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado com os filhos, pessoas idosas e doentes. “Muitas dessas mulheres acabam dando água contaminada para suas crianças e torcem para que elas não fiquem doentes, sabendo que depois ela vai precisar levar essa criança ao posto de saúde que muitas vezes não fica perto de sua residência, o que implica em despesas financeiras e tempo dessa mulher despendido para essa função”. É por isso que devemos ter em mente que toda e qualquer política de desenvolvimento sustentável deve adotar a ótica do cuidado no centro, a política do cuidado é aquela que leva em consideração a realidade das famílias mais vulneráveis, onde as mulheres são as mais afetadas.

Anna Luísa é Fundadora e CEO da SDW.

Ana Valéria Araújo – Democracia sólida se faz com sociedade civil forte

Ana Valéria, associada do IDS, iniciou sua fala dizendo que o respeito aos DH é condição absoluta para as democracias existirem e avançar. Não existe democracia sem sociedade civil organizada e fortalecida, que possa impulsionar a demanda por direitos e a garantia daqueles já conquistados. Tivemos no Brasil alguns avanços nesse campo após o período trevoso da Ditadura Militar, mas, segundo ela, eles não foram suficientes para que o Brasil deixasse de ser um país que desrespeita os direitos mais básicos.

Para Ana Valéria, as cidades não têm como ser sustentáveis em si mesmas, pois elas fazem parte de um ecossistema que as extrapola. Ninguém habita esse mundo sozinho, estamos conectados em uma grande rede, um grande território ainda que os limites municipais estejam evidentes. “Precisamos incluir nessa reflexão o que está para além de cidades democráticas e sustentáveis. O Brasil tem dados de desigualdade escandalosos, só no Rio de Janeiro 63% das pessoas abordadas pela polícia são negras e pardas, a maioria são homens e pobres. A violência nessas abordagens também aumentou nas últimas duas décadas. As chacinas durante a pandemia aumentou 50%, matando mais pessoas em 2021 do que no ano anterior. Três a cada quatro chacinas aconteceram durante ações da Política Militar em favelas e periferias do Rio, ações essas que foram proibidas pelo STF – Supremo Tribunal Federal”, disse ela.

Citando vários dados que apontam o aumento da violência contra mulheres e indígenas, além da taxa de mortalidade pela Covid-19 ser mais baixa em bairros de alto poder aquisitivo em São Paulo, Ana Valéria salientou o racismo estrutural e a desigualdade de gênero como base para as desigualdades sociais. A superação delas diz respeito ao país que a gente quer, hoje e no futuro. “Os desafios são enormes, mas precisamos começar a enfrentar todos eles, a questão climática com recorte racial, com a lente para as populações marginalizadas que já são as maiores vítimas desse cenário”, afirmou.

Ana Valéria Araújo é Superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos e associada IDS.

Confira aqui o debate completo:

Acesse também os links abaixo para conhecer os últimos debates dos Espaços de Ativismo:

Democracia e Sustentabilidade: desafios e diferenças do ativismo nos séculos XX e XXI

Emergência climática: como é possível construir um futuro sustentável?

Sobre o IDS Brasil: uma organização que atua há mais de 10 anos buscando soluções para políticas públicas e iniciativas locais e nacionais de desenvolvimento socioambiental e incidência política.

Sobre a agenda Formação & Espaços de Ativismo: iniciativa tem como objetivo geral promover, por meio de ações intergeracionais, a educação para a sustentabilidade e a democracia entre jovens, entre 18 e 35 anos, lançando um olhar crítico sobre as agendas temáticas e sua intersecção na contemporaneidade.

Sobre a TETO Brasil: A TETO trabalha pela construção de um país justo e sem pobreza. Em associação com a organização internacional TECHO, presente em 18 países da América Latina, estamos há 15 anos no Brasil, mobilizando voluntários e voluntárias para atuar lado a lado de moradores e moradoras em comunidades precárias de diferentes Estados e regiões. Juntas e juntos, a TETO constrói soluções concretas e emergenciais que proporcionam melhorias nas condições de moradia e habitat destes territórios.

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