17/08/2020
Lá se vão seis meses desde o primeiro caso do novo coronavírus notificado no Brasil. No começo de agosto a contabilidade oficial do Ministério da Saúde indicava mais de 2,8 milhões de casos confirmados e a perda de vidas em território nacional agora ultrapassa a triste marca de 100 mil óbitos. O drama da Covid-19 seguramente mexeu com um enorme conjunto de setores da vida em sociedade – e, entre as principais recomendações para conter o avanço da epidemia, está a frequente lavagem das mãos. Por isso, uma das motivações desta Nota parte da seguinte pergunta: será que o combate à pandemia, pelo menos, gerou uma maior comoção que resulte na priorização da garantia de acesso aos serviços de água e esgoto?
A inquietação levou à pesquisa.
As correlações entre saúde e saneamento básico são várias. Em momentos de "normalidade", fora da pandemia, as doenças de veiculação hídrica acontecem aos milhares todos os anos, como, por exemplo, a dengue e doenças gastrointestinais infecciosas. “Normalidade” porque, em pleno século XXI, o Brasil ainda está anos-luz da universalização deste serviço básico. Para dificultar ainda mais, a principal medida para evitar a transmissão do novo coronavírus (Sars-CoV-2) é exatamente a correta limpeza das mãos. E mais, este vírus é tão desafiador que desde dezembro de 2019, quando foi identificado o primeiro caso da doença na China, até o momento, a ciência ainda não foi capaz de compreender se e como a Covid-19 pode ser transmitida pelos esgotos.
Resta ainda compreender como as políticas públicas deste setor foram e estão sendo conduzidas por nossos governantes.
Sob a ótica estritamente legalista, nota-se que todos os estados brasileiros tomaram alguma medida para garantir o acesso à água, seja com a não interrupção dos serviços de saneamento básico e/ou com a isenção da cobrança das tarifas para as famílias em situação de pobreza. Esse quadro geral ficou devidamente ilustrado a partir de artigo publicado no site do Observatório das Águas em 7 de julho, o qual desde então indicava "a necessidade de uma maior transparência, uma comunicação mais assertiva e uma prestação de contas mais adequada, tanto dos governos estaduais quanto das empresas de saneamento".
Entretanto, diante do grau de impacto da pandemia da Covid-19 na saúde e na vida da população brasileira, em especial nas camadas em situação de vulnerabilidade, um grau de detalhamento a mais se fazia necessário. Portanto, foi colocada uma lupa nessa investigação a partir de um conjunto extenso de demandas e questionamentos realizados via Lei de Acesso Informação, buscando compreender quais ações foram adotadas pelos estados para garantir o abastecimento de água e esgotamento sanitário durante a pandemia e como se dará o financiamento de tais ações. Esse processo foi conduzido pela ARTIGO 19, organização internacional especializada em assuntos de transparência, e os resultados serão sistematizados e publicados para que todos possam ter acesso.
Foram 216 pedidos de informação enviados e acompanhados entre os dias 01 de junho e 22 de julho, direcionados às secretarias de governo e às companhias de abastecimento de todos os estados e do Distrito Federal. Com o intuito de delimitar o escopo da pesquisa, os pedidos foram enviados às Companhias estaduais de abastecimento de água pois elas são responsáveis pelo atendimento de 74,2% da população brasileira.
As respostas obtidas permitem afirmar que: de forma sistemática e reiterada, o Estado brasileiro, representado nesta pesquisa pelos governos estaduais, nega-se a assumir sua responsabilidade e protagonismo na garantia da melhoria progressiva dos serviços de água e esgoto, mesmo durante a pandemia. Evidentemente, isso é reflexo de uma postura histórica construída ao longo de muitos anos e os dados levantados dão consistência para tal interpretação. Trata-se, portanto, de afirmações feitas baseadas em dados e não em achismos ou paixões.
Aos dados, então!
(Até o fechamento da análise não obtivemos resposta para 51 dos pedidos e 42 foram respondidos pelas companhias de água, mesmo tendo sido direcionados inicialmente para as secretarias de governo do estado)
Fica evidente uma posição extremamente passiva dos governos estaduais, terceirizando responsabilidades de políticas públicas e atenção aos mais vulneráveis em um período de combate à pandemia. Em primeiro lugar, destaca-se que empresa estadual de saneamento não é formuladora de política pública. Ela deve ser uma operadora de serviços, a partir do estipulado pelos planos de saneamento, de acordo com o que está escrito em seus contratos e ao que as agências reguladoras determinam em seus processos. Em se tratando de uma política pública com impactos diretos na saúde, que coloca em risco a vida das pessoas, como governos estaduais podem terceirizar essa tomada de decisões?
Também chama a atenção o fato de que os governos estaduais, ao se negarem ou terceirizarem respostas sobre a fiscalização, parecem entender que as agências reguladoras estaduais não fazem parte da sua própria estrutura. A legislação garante independência decisória e orçamentária às agências reguladoras, mas isso não significa que elas são um "corpo estranho" ao governo. Pelo contrário, o relator especial da ONU para o tema, Leo Heller, afirma categoricamente que as agências reguladoras também têm a responsabilidade de zelar pelos direitos humanos relacionados à água e ao esgoto (A/HRC/36/45).
Ainda, nos preocupa a dificuldade em obter informações sobre o acesso à água, considerando o baixo número de respostas recebidas de maneira satisfatória. Em um momento de crise sanitária, os mecanismos de transparência e disponibilização de informações à população deveriam ser reforçados, ainda mais se tratando de um direito essencial para a prevenção do contágio de Covid-19.
Esse retrato da realidade é extremamente relevante para que a sociedade brasileira desenvolva um debate sério, especialmente nos dias de hoje em que saneamento está nas capas de jornais e sofrendo alterações legislativas relevantes. Não se trata do debate entre a prestação privada ou pública. O fato é que, independente do modelo de prestação do serviço, o Estado brasileiro tem responsabilidades indelegáveis, de planejar, fiscalizar e garantir que as condições de vida da população melhorem.
Essa é a dimensão dos direitos humanos, que deveriam ser respeitados e internalizados pelo Estado brasileiro. E aqui é importante que se faça um esclarecimento. A pesquisa explorada nesta nota foi limitada à esfera estadual por dois motivos: porque os governos estaduais assumiram a dianteira ao estabelecer regras legais sobre o acesso à água durante a pandemia e pelo motivo histórico deste setor no Brasil ainda vastamente ocupado pelas companhias estaduais (o que garantiu um escopo representativo). Isso não significa excluir a União e os municípios de suas responsabilidades. Como o próprio título desta nota nos lembra, o Estado brasileiro como um todo tem um papel central e deve envidar todos os esforços à universalização, tanto com os cuidados emergenciais durante a pandemia, quanto depois.
Não por acaso em 2010 e 2015 o acesso aos serviços de água potável e esgotamento sanitário foram reconhecidos como direitos humanos. E desse reconhecimento decorre que os entes estatais têm a função de garantir que as condições desses serviços melhorem de forma progressiva, colocando à disposição todos os esforços e recursos disponíveis para alcançar tal objetivo.
Essa clareza é fundamental para que o Brasil consiga ter o avanço civilizatório em direção à universalização do acesso à água e saneamento, com serviços qualificados, transparência das informações e, mais importante ainda, sem deixar ninguém para trás, conforme preconiza a Agenda 2030 e em especial o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável No. 6: "Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos".
São Paulo, 17 de agosto de 2020
Assinam esta nota:
Abraço Guarapiranga
ARTIGO 19
Associação Bem-te-vi Diversidade
Atelier Jambeiro
Associação Movimento Garça Vermelha
Bons Ventos
Centro Santo Dias de Direitos Humanos
Cidades Afetivas
Espaço de Formação, Assessoria e Documentação
Fundação Avina
Instituto Alana
Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP)
Instituto MARAMAR
Instituto Trata Brasil
Planetapontoocom
Rede Ecodespertar
Toxisphera Associação de Saúde Ambiental
Parceiros