05/08/2021
A relação entre desigualdade de gênero e desigualdade social, para muitos, parece não ter nenhuma conexão, nenhum diálogo entre si. No entanto, não são poucas as opressões que vivenciamos nesse tempo histórico e parece que, de fato, é bastante incômodo para fazer o exercício de pensar suas raízes. Discutir e evidenciar esses contextos sociais é importante e até alivia nosso ser desgastado, mas isso não vai resolver nada enquanto não tivermos a coragem de enfrentar aquilo que as origina e as organiza como opressão: o capitalismo como modelo de sociedade. Antes que os olhos de quem lê se espantem, eu já logo respondo: não tenho as respostas. No entanto, existem várias saídas possíveis que, se combinadas, poderão dar certo.
É inegável que ainda vivemos em um modelo capitalista, mas quero acreditar que a pandemia nos ensinou algo muito valioso que ainda não é consenso para a maioria, afinal, nos desapegar dos velhos padrões realmente é algo muito difícil de ser feito. A lógica em que nos organizamos em formato de Estados Nação, preocupados em defender fronteiras e competir entre si, não é a mesma lógica de um vírus que circulou entre nós sem pedir licença. Ficou nítido que ninguém controla a natureza e que crises globais exigem soluções globais. Se faz necessário cada dia mais a noção de cidadania onde uma nova expressão de solidariedade global começa a despontar. A importância da democracia e da renovação das plataformas democráticas é urgente nesse momento e a questão das desigualdades sociais têm um peso enorme nessa agenda.
Alguns dados recentes divulgados pela Oxfan em sua série intitulada “Nós e as desigualdades” mostram que alguma evolução aconteceu no Brasil nos últimos tempos, mas ainda estamos engatinhando. Quando paramos para refletir sobre as possibilidades de uma nova economia e os direitos humanos, alguns dados chamam atenção.
A mobilidade social está condicionada à redução das desigualdades. Sem isso não há progresso. A pesquisa aponta que 86% das pessoas entrevistadas acreditam que é importante reduzir a desigualdade de renda entre ricos e pobres e o Estado tem um papel fundamental para realizar isto por meio de políticas públicas concretas. Além disso, 56% das pessoas concordam em pagar mais impostos para financiar políticas sociais (com mais creches públicas e postos de saúde, amplo apoio à universalização dos serviços públicos). Essa opinião é 25% a mais de pessoas do que no ano de 2019. Esse fato é relevante porque é a primeira vez que isso acontece desde o início desse monitoramento. Ocorre também a defesa de um sistema progressivo de tributação, ou seja, de taxar mais os ricos. A pesquisa apontou um aumento de 13% na opinião das pessoas que acreditam nisso em 2021 se comparada à opinião dada em 2017 (71%) e em 2020 (84%).
Outro dado relevante é que a percepção do que é a pobreza para alguns brasileiros parece ser algo equivocado: 52% das pessoas acreditam que a linha da pobreza está acima de uma renda de R$1.000 e que abaixo disso é onde mora a pobreza. Ou seja, uma renda entre 1 mil e 2 mil é ser pobre no Brasil. Entretanto, o Banco Mundial indica uma renda de R $300 como o limite para a linha da pobreza.
No geral as pessoas mapeadas na pesquisa da Oxfam se acham pobres apesar de receberem até cinco salários mínimos quando a esmagadora maioria do povo brasileiro é miserável.
A pesquisa mostrou uma relação interessante entre educação, fé e religião. Esses três pilares para os brasileiros atualmente parecem ser pré-requisito para obter uma melhora de vida. Podemos perceber aqui a presença do discurso meritocrático muito propagado pela teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais. Mas, em anos anteriores da série, em 2017 e 2019, a fé religiosa era algo muito decisivo na melhora de vida. A educação não aparecia citada nas respostas dos entrevistados. Há esperanças, portanto. Hoje, na opinião das pessoas, depois de educação, fé e religião, temos a saúde como item de avanço na melhora da vida.
Também é visível na pesquisa um avanço na percepção de que o racismo institucional existe em mais de 75% da população entrevistada. Outro ponto importante a destacar é que 86% discordam que o papel da mulher é ficar em casa cuidando dos filhos. Ufa!
Por outro lado, parece que ainda não caiu a ficha para a relação intrínseca entre as desigualdades sociais e o “papel da mulher”. Melhor dizendo, entre o empobrecimento econômico de um país e suas famílias com a divisão desigual do trabalho doméstico e com a escassez de tempo feminino.
Um debate recente realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a ONU Mulheres e a Fundação Friedrich Ebert (FES Brasil) apresentou um relatório interessante sobre como o papel das mulheres desempenhado com as atividades do cuidar – a elas atribuídas – é preponderante para a economia capitalista. O documento discute a dimensão de gênero no contexto da abordagem do grande impulso (ou Big Push) para a Sustentabilidade no país.
Baseado em evidências, são oferecidos subsídios para a formulação de uma estratégia de recuperação econômica com igualdade e sustentabilidade, que promova, a partir de investimentos sustentáveis, oportunidades de emprego e renda para as mulheres, consideradas na sua diversidade, e de melhoria da disponibilidade e da qualidade de serviços de cuidado, liberando o tempo das mulheres e contribuindo para sua autonomia econômica.
Algumas mulheres representantes de ministérios da economia dos países latinos convidados para o debate ressaltaram que a recuperação econômica com sustentabilidade deve envolver a igualdade de gênero nas políticas públicas e na condução econômica dessas políticas.
1 – É importante subverter o entendimento de gerar emprego. Não se trata apenas de fomentar setores da construção civil. Abrir empregos nos setores da indústria e do transporte para que as mulheres possam ocupá-los é fundamental. De acordo com os dados apresentados, 1 a cada 100 pessoas da construção civil é mulher. Ou seja, precisamos com urgência “feminilizar” os empregos desenvolvendo estratégias e capacitação para que mulheres possam ocupar espaços de tecnologia e empregos verdes;
2 – Energia Renovável: menos de 12% de mulheres ocupam empregos nessa área. Mulheres ocupam a maior parte dos empregos relacionados aos cuidados, o que reduz suas possibilidades;
3 – A escassez / pobreza de tempo feminino é apontado como a principal causa das desigualdades econômicas, pois enquanto as mulheres, que são as principais responsáveis pela geração de renda dos lares do Brasil e da América Latina, não tiverem tempo para investir em capacitação profissional, a mobilidade social de suas famílias não ocorrerá, perpetuando assim o quadro de desigualdades;
4 – Reduzir a jornada constante de trabalho doméstico feminino para que as mulheres tenham tempo para estudar e se capacitar. Lembrando que o acesso digital é precário para muitas mulheres de localidades afastadas;
5 – No plano de descarbonização de frotas urbanas para transporte público de muitos países na América Latina ocorre a falta de mão de obra e na Costa Rica as mulheres são minoria na condução de veículos de transporte público (somente 4,5% são mulheres aptas para conduzir os veículos e 95% são homens). A maioria de empresas de frotas urbanas são familiares;
6 – O trabalho do cuidado não remunerado tem, na América Latina, a cultura geral de que “Mulheres não fazem nada”. Sem elas, no entanto, não é possível produzir as forças de trabalho para o sistema capitalista. Elas não só dão à luz novos seres humanos, como também criam, alimentam, promovem a educação, lidam com todo o sistema doméstico de cuidado familiar com crianças, idosos e serviços que um lar demanda. Mulheres são mais suscetíveis que os homens aos impactos climáticos, além de estarem mais tempo em deslocamento diário e, portanto, sob maior risco. O Estado se exime de suas obrigações para com as populações, deixando a cargo das mulheres todo o trabalho duro. Em Bogotá 9 a cada 10 mulheres trabalham cerca de 30% a mais que os homens por dia (10 horas).
Existe uma completa inação frente à crise climática no Brasil atualmente. Para existir uma retomada econômica é necessário haver uma nova consciência para colocar a política do cuidado no centro de todas as decisões daqui em diante. Recentemente a União Europeia apresentou um plano ambicioso contra a poluição que considera extinguir carros à gasolina até o ano de 2035. O projeto prevê, entre outros pontos, o aumento do uso de energias limpas —como solar e eólica—, estímulos para o uso de carros elétricos, taxar ainda mais aviões e navios. A implantação das medidas deverá custar 500 bilhões de euros (R$ 3 trilhões).
O mundo todo está conectado e precisamos entender como viver nesse planeta de modo responsável. É preciso fazer uma completa transformação no estilo de desenvolvimento econômico e de fato TRANSFORMAR tudo que a gente conhecia até então como política pública emancipatória. Não podemos mais voltar ao que éramos antes da pandemia. Ou seja, precisamos inverter a lógica adotada até hoje e promover uma recuperação de caráter novo. A crise climática não é uma crise do futuro. O impacto já está aqui. A chave para a sustentabilidade econômica é promover empregos para as mulheres.
Esta é sem dúvida uma abordagem contemporânea de um tema que ganha cada vez mais relevância global nos governos, empresas e sociedade civil. A agenda ambiental é um tema geopolítico que pauta o desenvolvimento. Além de ser um tema contemporâneo e de ditar as bases para que novos arranjos e parcerias comerciais aconteçam ou não, essa é uma agenda que engloba um grande divisor de águas no mundo, assim como foi a era digital recente.
A igualdade entre homens e mulheres em direitos e deveres, ODS 5 da Agenda 2030, passa por essa mudança de mentalidade e de prática. Se outrora o combate à corrupção era uma prioridade para os brasileiros e hoje essa prioridade é emprego, saúde e combate ao racismo, já podemos perceber que a população é capaz de enxergar de modo diferente alguns aspectos sociais que não via antes, como mostrou a pesquisa da Oxfam. Sem dúvidas, boas lideranças e instituições responsáveis que informam e conduz ao esclarecimento fazem a diferença. Um país afirmativo é um país que almeja um futuro inclusivo e próspero a longo prazo.
Fontes:
Oxfam – Nós e as desigualdades 2021 https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2021/
“A dimensão de gênero e Grande Impulso para a Sustentabilidade” – Big Push – mudar o paradigma econômico da sustentabilidade https://youtu.be/m6Sfa34XKCo
União Europeia lança plano ambicioso contra poluição – https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/07/uniao-europeia-lanca-plano-ambicioso-contra-poluicao-que-inclui-vetar-carros-a-combustao-ate-2035.shtml
PANDEMIA ELEVOU SOBRECARGA DE TRABALHO DAS MULHERES NA EDUCAÇÃO – https://www.institutounibanco.org.br/conteudo/pandemia-elevou-sobrecarga-de-trabalho-das-mulheres-na-educacao/
A desigualdade de gênero foi escancarada durante a crise da covid-19 – https://vocerh.abril.com.br/blog/ana-bernal/sobrecarga-de-trabalho-mulheres/
Sobrecarga da mulher aumenta e atrapalha vida profissional – https://cultura.uol.com.br/noticias/18293_sobrecarga-da-mulher-aumenta-e-atrapalha-vida-profissional-o-que-as-empresas-tem-a-ver-com-isso.html
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