Justiça Social ainda é apenas um conceito para mais da metade da população global

20/02/2025

Por IDS Brasil

Justiça social deveria partir do pressuposto de que todos os membros da sociedade merecem ser tratados com dignidade e respeito, independentemente de sua origem, raça, gênero, classe social ou outras características. O Dia da Justiça Social deve ser um momento de reflexão voltado para a ação. Há muito a ser feito.

Quando o assunto é Justiça Social há duas coisas que vêm imediatamente à baila, os sistemas de cotas diversificadas, que garante o acesso de pessoas com menor “handcap”, termo que nos esportes significam reduzir as desvantagens, a segunda coisa é o conceito de “meritocracia”, uma tese darwiniana que garante o acesso ao mais forte, sem a equalização das oportunidades. 

A ideia de premiar o esforço individual tem origem no iluminismo, no século 18, quando surgiram novas ideias sobre igualdade e justiça e a defesa da ideia de que o talento e o mérito individual devem ser os critérios para o sucesso social. Esse conceito influenciou muito as revoluções liberais e foi introjetado especialmente nas empresas do nascente capitalismo industrial do século 19.

No século 20 a ideia da meritocracia encontrou solo fértil, especialmente nas elites empresariais e urbanas.  Mas o termo “meritocracia” somente foi cunhado em 1958, pelo sociólogo britânico Michael Young em seu livro “The Rise of the Meritocracy”. O autor, no entanto, não fazia a defesa da meritocracia. Seu livro foi um alerta para os perigos de se estruturar uma sociedade apenas baseada no mérito individual, o que poderia levar à exclusão e desigualdades crônicas.

No Brasil as ideias vinculadas ao individualismo como valor para alcançar o sucesso social, político ou econômico ganharam força a partir dos anos 1990, com a abertura do país para o mercado internacional. Entre os bens de consumo importados, chegou com força também movimentos culturais, como os valores da geração Yuppie, importado dos Estados Unidos, e que significa Young Urban Professional, que refere a jovens profissionais urbanos, geralmente com alto nível de escolaridade e renda, que buscam sucesso financeiro e profissional. 

A geração Yuppie dava muito valor ao sucesso pessoal e profissional, modelos estéticos vinculados à forma física, à moda e à beleza, além do consumo de bens de luxo. Esse padrão foi muito estimulado pela mídia e pela publicidade da época. As críticas eram que o estilo de vida yuppie era alienante e superficial, com a valorização excessiva do sucesso financeiro em detrimento de valores mais coletivos, como a solidariedade e a responsabilidade social. E que esse estilo de vida apenas ampliava o fosso da desigualdade no Brasil.

Ao mesmo tempo em que esse movimento de individualismo exacerbado ganhava força no final do século 20, os movimentos sociais por direitos humanos e combate à desigualdade ganharam força e tiveram início mobilizações em prol de reparações históricas, inicialmente em relação à população negra, que carrega ainda hoje uma desigualdade estrutural. Afinal, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão.

O processo de redemocratização do país, a partir da década de 1980, e a promulgação da Constituição em 1988 abriram espaço para o debate sobre direitos humanos e igualdade racial e impulsionou a discussão sobre políticas de ação afirmativa. O primeiro passo concreto foi dado pela Universidade de Brasília (UNB), em 2003, ao adotar um sistema de cotas. A iniciativa foi seguida por muitas outras universidades do país, mesmo com a resistência de muitos intelectuais e estudiosos que afirmavam que as cotas eram mais um problema do que solução.

De acordo com o professor e historiador Sidney Chalhoub, da Unicamp, o tema das cotas está longe de ser uma originalidade brasileira. As melhores universidades do mundo, algumas que a própria Unicamp utiliza como referência para qualificar suas atividades, adotam a diversidade no ingresso dos estudantes há bastante tempo. “Harvard, Yale e Columbia, para ficar em três exemplos, adotam políticas agressivas de promoção da diversidade do corpo discente”, explica.

O pressuposto assumido pelos defensores dos sistemas de cotas, que teve início com critérios raciais e se expandiu para abarcar critérios econômicos, de gênero e de outras, é que a diversidade gera uma riqueza cultural e de valores que produz inovação e amplia as oportunidades e geração de valor tanto nos ambientes científicos e acadêmicos, como nas empresas e serviços públicos.

A regulação dos sistemas de cotas veio apenas em 2012, com a Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que reserva vagas para estudantes de escolas públicas, com subdivisões para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.

Aos poucos o movimento pela diversidade foi ganhando força, com a difusão dos valores da diversidade através de movimentos sociais, organizações empresariais, como os brasileiros Instituto Ethos e Cebds – Compromisso Empresarial pelo Desenvolvimento Sustentável, o os grandes acordos liderados pela ONU, como os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), de 2015, e os Princípios ESG, acrônimo que em português significa Ambiental, Social e Governança. Esses princípios também foram criados em uma ação das Nações Unidas, de 2005.

No Brasil foram criadas algumas importantes políticas para o combate da desigualdade estrutural, sendo a principal delas o Bolsa Família, que atua sob o princípio da renda básica para sustento de uma família, com contrapartidas relacionadas à saúde e educação de crianças e adolescentes. Não é o suficiente para garantir um padrão socioeconômico médio para as classes menos favorecidas, mas já conseguiu alguns avanços, especialmente no combate à fome, tirando o país de uma vergonhosa presença no mapa mundial da fome crônica.

O Dia da Justiça Social não é uma data para comemoração, deve ser mais para reflexão e análise dos dados sobre onde estamos e para onde queremos ir. A história mostra que houve avanços significativos, mas a desigualdade ainda é um problema crônico no Brasil e no mundo. Em termos de divisão da renda nacional, os 50% mais pobres se apropriam de apenas 12% da renda e a média de escolaridade no país é de apenas 7,8 anos, o que não dá nem para terminar o ensino fundamental.

No mundo a desigualdade de renda, segundo o World Inequality Lab, que tem entre seus pesquisadores os economistas Lucas Chance, Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, os 10% mais ricos da população mundial detêm cerca de 76% da riqueza global, enquanto a metade mais pobre da população mundial possui apenas 2% da riqueza total. Ou seja, quando se fala em Justiça Social há ainda um longo caminho a ser percorrido.

Também há de se levar em conta que a desigualdade social no Brasil não é apenas um reflexo de disparidades econômicas, mas uma realidade multifacetada que atinge as camadas mais vulneráveis da população de maneira abrangente e devastadora. A falta de acesso a serviços básicos essenciais, como saúde, educação e transporte, impede que milhões de brasileiros escapem do ciclo de pobreza e exclusão. 

Também, a exposição a riscos ambientais, como enchentes e deslizamentos de terra, é um reflexo da urbanização precária que acomete as periferias e favelas. Estima-se que aproximadamente 17,1 milhões de pessoas vivam em mais de 13,1 mil favelas no Brasil, onde a falta de infraestrutura agrava esses riscos. Globalmente, mais de 1 bilhão de pessoas enfrentam condições similares em assentamentos informais (Data Favela 2022 e IBGE 2020). Essa é uma realidade alarmante e reflete a vulnerabilidade dessas comunidades, que enfrentam não só a escassez de recursos, mas também a constante ameaça de desastres naturais, resultando em perdas humanas e materiais irreparáveis. 

Esse cenário exige, com urgência, políticas públicas integradas e eficazes, que vão além do combate à pobreza e abrangem a criação de um entorno mais seguro e justo em termos de acesso à educação, saneamento, proteção contra catástrofes ambientais, entre muitos outros direitos que deveriam ser universais, mas não são universalizados para quase dois terços da população mundial.

(IDS Brasil)

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