Ministério dos Povos Indígenas é um recomeço para a democracia

02/02/2023

Conversa com Ivaneide Bandeira Cardozo, ou Neidinha Bandeira, nome que adotou em sua militância pela causa indígena. Ela reforça que as redes de comunidades serão os suportes necessários para o sucesso das políticas do novo Ministério dos Povos Indígenas.

A história dos povos indígenas no Brasil, desde 1500, constitui basicamente de conflitos, agressões e apropriação de seus territórios. Somente nos últimos 50 anos, começaram a se consolidar políticas públicas que respeitam a existência dos indígenas e seus direitos. Mas ainda como povos tutelados pelo estado brasileiro. A Funai foi fundada em 1967 e nunca foi um organismo bem equipado para a enorme tarefa de oferecer apoio em saúde, logística, alimentos e tudo o mais que as comunidades precisam. Nos últimos quatro anos, no entanto, as coisas pioraram muito. Desde antes de sua posse, o ex-presidente Bolsonaro colocou os povos indígenas em uma lista de desafetos. Garantiu, e cumpriu, que não demarcaria um único centímetro de terras para comunidades indígenas ou quilombolas. 

Neste primeiro mês do novo governo, muitas das mazelas mantidas nas sombras nos anos recentes estão sendo colocadas às claras. As desculpas e justificativas esfarrapadas do governo anterior não conseguem manter no escuro a tragédia que assola o povo Yanomami, com milhares de mortes e  doentes por intoxicação por mercúrio. Vinte mil garimpeiros estão dentro de suas terras produzindo a maior devastação ambiental e social do nosso tempo no Brasil. Tão grave que pode configurar genocídio. 

Os desmandos, entre 2019 e 2022, criaram um clima de completa desconstrução de políticas públicas dirigidas aos povos indígenas e à proteção de seus territórios. O cenário de caos e mortes está demandando políticas inovadoras do governo Lula, que assumiu em 1º de janeiro de 2023. A principal inovação é a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que tem como ministra Sônia Guajajara, a primeira indígena a ser eleita deputada federal e, agora, a primeira a assumir um posto de primeiro escalão no governo federal.

Para conversar sobre o cenário e perspectivas da gestão de políticas públicas voltadas para as comunidades indígenas em todo o Brasil, o IDS Opina convidou Neidinha Bandeira, que desde pequena tem um olhar para as desigualdades e opressões sobre os povos da floresta. 

“Cresci no seringal até a idade de 12 anos. Lá minha mãe me ensinou a ler em revistas Grande Hotel, Sétimo Céu, Capricho e livros de bolso de bangue-bangue, onde as histórias mostravam sempre os indígenas sendo mortos e expulsos por invasores de suas terras. A partir dessas leituras, decidi que, se um dia pudesse ir aonde morava o povo da cidade, lutaria para defender os direitos dos povos indígenas.”

Neidinha Bandeira

Neidinha atendeu a chamada da equipe do IDS Opina durante um encontro de lideranças de 15 povos diferentes, em Rondônia, que trabalhavam no planejamento de ações para o período de 2023 a 2027. Ela é uma das fundadoras da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, uma organização que se dedica ao fortalecimento da identidade, cultura, economia, educação e saúde dos povos indígenas de diversas regiões do Brasil, que atualmente é coordenada por Txai Suruí, ativista indígena e coordenadora do Movimento da Juventude Indígena.

Ela explica que o atual governo apresenta uma oportunidade que não pode ser desperdiçada, por isso o planejamento de quatro anos: “estamos fazendo um planejamento com foco nas necessidades das 21 terras nas quais atuamos e nas periferias das cidades. E estamos olhando para este novo cenário para propor ações para a garantia dos direitos da floresta e que a gente consiga ter políticas públicas que realmente respeitem os direitos dos povos indígenas, do povo preto, LGBTQIA+ e todas essas maiorias minorizadas que foram excluídas nos últimos quatro anos”. 

O que representa a criação do Ministério dos Povos Indígenas?

A criação do ministério é como se fosse uma reparação histórica de 522 anos sem respeito aos direitos indígenas e dos povos da floresta. Esse ministério deveria existir desde o começo e não havia. E o Lula faz isso agora e para a gente é superimportante esse ministério. E ter a Soninha Guajajara dentro dos ministérios, isso nos honra muito. Ela é conhecida pela luta em defesa dos povos indígenas. Ter a Joênia Wapichana como presidente da Funai é uma grande honra, ela é conhecida pela sua luta em defesa dos povos indígenas, e, quando era a única deputada indígena no Congresso, enfrentou o período bolsonarista de perseguição aos direitos dos povos indígenas. A Joênia foi incansável em defender os direitos dos indígenas no Congresso. 

Que estrutura você acredita que esse ministério deve ter?

A Joênia e a Soninha vão precisar de muita ajuda, primeiro porque o ministério foi recém-criado. Ele precisa definir suas estruturas, um orçamento – não tem orçamento e o que tem é o orçamento da Funai. O orçamento da Funai não resolve os problemas da própria Funai. Nós esperamos a demarcação das terras e nós sabemos que demarcar terra vai gerar conflito. Temos que estar preparados para resolver o problema que é enorme, mas temos uma esperança muito grande, a Soninha e a Joênia são pessoas muito conhecidas internacionalmente.  

Tem de haver uma parceria com o Ministério do Meio Ambiente?

Nós temos uma confiança enorme na Marina Silva, que está à frente do Ministério do Meio Ambiente. Que essas três mulheres possam trabalhar para trazer recursos para as questões indígenas e ambientais. A questão indígena não anda separada da questão do meio ambiente; para nós é fundamental que, tanto o MMA quanto o MPI, estejam juntos para conter o desmatamento e os ataques aos territórios Indígenas. 

O que é preciso fazer para retomar a demarcação de terras indígenas?

Precisamos de apoio jurídico para que se sustentem as ações, porque não basta querer demarcar terras, dizer: “olha eu vou dar uma canetada”. E não é só a canetada que resolve, você tem que dar a canetada, mas tem que fazer a implementação dessas ações. Muita terra não tem plano de gestão, então precisa ser elaborado. 

Há muitos interesses em relação às terras na Amazônia. Como lidar com isso?

Nós sofremos um assédio muito grande dos chamados “cowboys do carbono”, organizações que nunca trabalharam com povos indígenas, que agora estão assediando os povos para fazer projetos de carbono. E isso é muito preocupante porque algumas dessas organizações estão aparecendo como se fossem ONG e eu não estou nem falando das empresas, porque das empresas é de se esperar. Mas algumas que se intitulam ONG, mas sempre foram chapa branca, que estavam lá no governo Bolsonaro e nunca falaram nada, agora estão assediando os povos indígenas.

Como reagir a esse assédio?

Estamos muito preocupados. Nós sabemos que não é fácil, essas pessoas entram oferecendo um monte de coisas, cheios de promessas, recursos, e a gente sabe que isso é muito perigoso. A direita se instala, se passando por organizações que estão preocupadas com os povos e nunca estiveram. Os caras estão preocupados em ganhar a grana, e não preocupados realmente em garantir direitos. Então, tem esse monte de coisas que nós precisamos ajudar a Soninha e a Joênia a ficarem atentas, porque elas estarão em Brasília e é muita terra, não tem como elas saberem o que acontece em cada estado. 

Antes, as ações sobre povos indígenas estavam espalhadas por vários órgãos e ministérios. Como vai ser agora?

O Ministério dos Povos Indígenas é uma das bases do governo, a criação de um ministério faz a questão dos povos indígenas deixar de estar atrelada apenas a uma fundação. Todas as ações indígenas estavam esfaceladas em vários ministérios, o que gerava uma série de problemas. Não havia uma instituição central, onde os indígenas pudessem falar sobre suas políticas públicas. Para mim, o Ministério dos Povos Indígenas é a base da construção de políticas públicas nos territórios indígenas. Principalmente nas questões territoriais, você tem mais segurança, a partir de você ter um comando indígena que pensa, define as políticas públicas junto com os povos indígenas e escuta as lideranças. Então, você tem uma definição de política institucionalizada. Antes não. A Funai é uma fundação, politicamente isso é muito mais fraco. Quando você tem um ministério, tem uma instituição ligada diretamente à Presidência da República, onde você vai estar junto com os outros ministros planejando, fazendo políticas públicas. 

Como os indígenas podem apoiar o ministério?

Os movimentos indígena e indigenista atuam diretamente nos territórios e eles têm várias organizações e associações. Elas se articulam como uma rede. Em cada região você tem as grandes centrais. Aqui em Rondônia, nós temos a AGI (Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia), que organiza todo o estado. Essas organizações vão ser a base de dados, de fortalecimento do ministério. As organizações indígenas e indigenistas têm isso muito claro, que elas vão fortalecer o ministério. E todo mundo está se preparando e discutindo para isso. Pela primeira vez na história, há uma luta em prol de um fortalecimento de um ministério feito por uma base de rede organizada. 

Como essa rede vai atuar?

Quem está na base sabe como funcionam as coisas, sabe quem é de direita, quem é egoísta, quem é de esquerda, conhece quem é aliciado e quem não é, tem indígena que é aliciado pelo sistema, mas esses são conhecidos pelo movimento, e o movimento vai alertar o ministério sobre isso. Ninguém quer que o ministério no final dos quatro anos deixe de existir, ninguém quer isso. Nós queremos que o ministério seja uma instituição permanente. Mas, para ser permanente, ele precisa ter pessoas nas quais se confia, não pessoas erradas que estão envolvidas com ilegalidades, que têm histórico envolvido com a extrema direita, mas sim pessoas que lutam pela democracia. 

Nós vamos ajudar e colaborar para que não errem, para que dê certo e isso é muito importante, mas nós também vamos cobrar, para que as coisas aconteçam, para que as promessas de campanha sejam cumpridas, os discursos sejam cumpridos. 

Quais são suas expectativas neste início de governo?

Nada será resolvido em um curto espaço de tempo, e vai dar muito trabalho, porque tem envolvimento de indígenas aliciados por madeireiros e garimpeiros. A gente não pode esquecer que tem indígena apoiando o Bolsonaro. Não é agora que nós temos um ministério, que tudo vai ser fácil e vai mudar. Não, o pessoal que era aliciado, continua aliciado. Não deixou de ser e talvez o maior trabalho que se tenha é exatamente resolver o problema do aliciamento. 

O problema do aliciamento é muito sério porque você vai enfrentar seu próprio parente, para tirar o garimpeiro, o madeireiro. Você tem que ter todo o cuidado com as indicações de quem vai coordenar a Funai. Não vai ser fácil, vai ser muito difícil e vai levar tempo. 

Você acha que o ministério vai ter força para enfrentar garimpeiros e madeireiros?

O movimento indígena está disposto a apoiar a Joênia e a Sônia para resolver este problema e retirar os invasores. Mas não podemos esquecer também que a maior parte do Congresso eleito é de direita. Não podemos esquecer disso e eles vão tentar prejudicar o máximo possível. Esses partidos de direita estão em cima do governo Lula para colocar a gente no Incra, Ibama, Funai, ICMBIO. Eles estão brigando por cargos muito seriamente e provavelmente vão conseguir. Vai ter muitos desafios pela frente, mas é bom saber o tipo de enfrentamento que vamos ter porque você cria estratégia e se une.

Qual a herança do período Bolsonaro?

No período do Bolsonaro teve uma coisa que ele conseguiu fazer e não podemos negar isso, foi unir as ONGs e os movimentos sociais. Nós éramos tão perseguidos, tão massacrados, tão ameaçados de morte que todo mundo começou a se unir. Passou a ter uma união das ONGs com os indígenas, com o MST, o MAP, com os pequenos trabalhadores rurais. Os movimentos permanecem unidos nesse apoio ao governo do Lula. Está claro o que um governo ditatorial pode trazer de prejuízo, que a ditadura tira os direitos dos povos. E eu estou falando de todo mundo, do povo branco, preto, amarelo, indígena, de todos os povos. O direito é tirado de todos. 

Nós estamos preparados para que o governo do Lula dê certo porque a gente não quer uma ditadura. Como disse o Lula: “democracia sempre”. O fato do Lula subir a rampa com o povo, receber a faixa do povo, para mim foi o momento mais simbólico dessa luta pela democracia.

Eu digo que teve dois momentos muito simbólicos, o Lula subindo e recebendo a faixa do povo e quando o Lula desceu a rampa com os governadores. 

Minibio

Ivaneide Bandeira Cardozo, ou Neidinha Bandeira –
Graduada em História, tem mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2013). Cursa o doutorado em Geografia, na linha de pesquisa “Etnias e Populações Amazônicas”, na UNIR. 

É fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, cuja atuação se estende a 52 etnias indígenas. À frente da organização, Neidinha esteve em expedições para prender invasores de terras e madeireiros ilegais e realizou diversas aproximações com povos até então isolados.

Possui experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena, atuando principalmente nos seguintes temas: gestão de território indígena, diagnóstico, etnozoneamento e Planos de Gestão Territoriais e Ambientais (PGTA).

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