09/12/2016
Água potável e saneamento básico são direitos humanos fundamentais, declarou a Organização das Nações Unidas em 2010. Cinco anos depois, com o objetivo de chamar a atenção para o drama vivido por mais de 2,5 bilhões de pessoas que vivem sem acesso a banheiros e sistemas de esgoto, a ONU decidiu considerar o saneamento como um direito distinto do direito à água limpa. As duas resoluções receberam o apoio do Brasil, que com esse gesto manifestou seu compromisso com a busca de um futuro mais digno, justo e saudável para sua população.
Infelizmente, há um longo caminho até que todos os brasileiros tenham acesso a esses direitos. Mais de 35 milhões vivem sem água tratada em suas casas. As moradias de 100 milhões não têm serviço de esgoto. Mesmo uma parcela dos moradores da cidade mais rica do Brasil enfrenta condições precárias de vida. Cerca de 100 mil não têm acesso à água tratada e 140 mil vivem sem sistemas de esgoto em São Paulo. Quase metade (47%) do esgoto coletado na capital paulista volta ao meio ambiente sem qualquer tratamento, levando doenças à população.
Como universalizar o acesso à água potável e aos serviços de esgoto? Como atingir esse objetivo de forma sustentável? Qual o papel da tarifa nesse desafio? Convidados pelo IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade) e pela Aliança pela Água, representantes da sociedade civil, da universidade, da iniciativa privada e do poder público se reuniram em 24 de novembro, em São Paulo, para buscar respostas para essas questões na Roda de Conversa “Tarifa de Água e Esgoto: Abrindo os Números para o Debate”, evento que contou com a parceria do Estadão e do Juntos pela Água.
Participaram do debate Ana Lúcia Britto, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Fernando Santos Reis, diretor-presidente da Odebrecht Ambiental; José Bonifácio de Souza Amaral Filho, diretor de Regulação Econômica-Financeira e de Mercados e presidente interino da Arsesp (Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo); e a arquiteta e urbanista, Marussia Whately, idealizadora da Aliança pela Água. O mediador foi o biólogo e ambientalista João Paulo R. Capobianco, presidente do Conselho Diretor do IDS. Na plateia, acompanharam o debate cerca de 50 pessoas, entre ambientalistas, especialistas em saneamento e acadêmicos.
Os debatedores chegaram a dois consensos principais. O primeiro foi a necessidade de que sejam adotados mecanismos para tornar mais transparente o processo de definição das tarifas. A população tem o direito de saber como são fixados os valores que paga mensalmente, quem participa dessa decisão e qual o destino dos recursos arrecadados.
Os participantes consideraram também fundamental que o cidadão passe a acompanhar e a participar desse debate, pois as decisões sobre a tarifa afetam a vida de sua família, de sua comunidade e das próximas gerações. Já há mecanismos de participação dentro da atual política de saneamento, como as audiências públicas, mas são reuniões que geralmente acontecem de forma protocolar, sem a participação efetiva da população. É preciso democratizar, de fato, esse debate.
Instrumento de sustentabilidade
Se a água e os serviços de esgoto são direitos fundamentais, é inevitável que se pense na perenidade desses direitos, ainda mais em razão da nova realidade apresentada pelas mudanças climáticas. De acordo com as previsões dos cientistas, haverá a ocorrência cada vez mais frequente de secas intensas e chuvas volumosas, eventos extremos que ameaçam os sistemas de abastecimento do país.
A tarifa pode ser um instrumento importante para a sustentabilidade dos mananciais e dos sistemas de distribuição de água. Hoje, é utilizada em benefício de um modelo caro, que depende de grandes investimentos para a captação de água em regiões cada vez mais distantes. Para a maioria dos participantes da roda de conversa, é a hora de fazer da tarifa um estímulo para o uso consciente da água em vez de usá-la apenas como uma simples fonte de receita de um modelo que vive do consumo desenfreado.
A consciência da população em relação ao consumo de água aumentou significativamente na Grande São Paulo durante a crise hídrica de 2014/2015. Para enfrentar a falta de água, a Sabesp, a empresa de saneamento do Estado de São Paulo, deu um bônus aos moradores que conseguiram reduzir seu consumo médio de água. Os que consumiram mais tiveram um acréscimo em suas contas. A adesão da população a esses incentivos foi intensa. Na média registrada entre fevereiro a dezembro de 2015, 80% dos moradores reduziram seu consumo de água.
Em vez de apostar na mudança permanente de hábitos do consumidor, a companhia resolveu encerrar bruscamente o programa, em prejuízo dos moradores que gastaram seu dinheiro em tecnologias, como cisternas, para economizar água. Apesar de estar autorizada a conceder bônus e multa até o final de 2016, a Sabesp suspendeu esses mecanismos oito meses antes do previsto, com a aprovação da Arsesp, a agência reguladora do Estado. A razão foi financeira. Os recursos que deixaram de ser arrecadados com os bônus superaram a receita obtida com as multas, o que impactou fortemente o cofre da companhia.
A decisão da empresa foi criticada pelos participantes do debate. "A crise mudou o relacionamento da população com a água. O encerramento brusco dos bônus e das multas fez com que se perdesse uma excelente oportunidade para mudar os padrões de consumo", afirmou Marussia Whately, da Aliança pela Água. José Bonifácio de Souza Amaral, da Arsesp, informou que legalmente a agência reguladora não tinha como impedir a decisão da Sabesp.
Instrumento de justiça social
Além de instrumento de sustentabilidade, a tarifa ajuda a levar a água e serviços de esgoto às famílias mais pobres. O modelo que prevalece no Brasil é o do subsídio cruzado, pelo qual moradores com renda mais baixa pagam contas menores graças ao sobrepreço das tarifas dos outros consumidores. É um modelo complexo, de difícil entendimento e sem transparência. Não é possível checar, por exemplo, se a quantia arrecadada de quem paga um pouco mais pela água está sendo usada em benefício da população mais pobre. Os participantes da roda de conversa defenderam a transparência dessas informações.
Para os debatedores, o aperfeiçoamento da tarifa passa ainda pelo fim da taxa fixa cobrada pela consumo até 10m³ de água por mês. Na opinião deles, é um sistema injusto e regressivo. Quem consome 4m³ por mês, por exemplo, pagará o mesmo valor de quem atinge o limite de 10m³. Estimula, ainda, o consumo do recurso, já que não há razão financeira para a economia de água.
Há vários outros modelos de tarifa para atender os moradores de baixa renda, lembrou Ana Lúcia Britto, da UFRJ. A professora carioca citou o caso da cidade mineira de Uberlândia, que tem a própria companhia de saneamento. As famílias com renda até dois salários mínimos podem consumir de forma gratuita até 20m3 de água. O benefício é bancado por um fundo que é abastecido com 5% da receita da companhia. Um modelo que tem se mostrado saudável financeiramente.
Modelos de tarifa
Em boa parte dos municípios do país, as pessoas não têm qualquer ideia de como funciona a tarifa de água e esgoto. O problema começa pelo próprio boleto, que traz poucas informações, entre elas o cálculo básico, o consumo do mês e o histórico desse consumo. Muitas vezes, moradores de condomínio não têm sequer contato com a conta de água, já que o pagamento é feito coletivamente.
A proximidade entre a tarifa e a população precisa começar na própria conta, concordaram os participantes do debate. Uma primeira medida importante seria cobrar do usuário somente aquilo que lhe é entregue. Muitas vezes, essa lei básica da relação entre consumidor e fornecedor não é respeitada.
Em São Paulo, moradores com perfis diferentes recebem o mesmo tipo de conta. Todos pagam, por exemplo, valores iguais pelo serviço de água e pelo serviço de esgoto. Por esse modelo, se uma família é cobrada em R$ 20 pelo consumo de água, será cobrada em valor idêntico pelo serviço de esgoto. Por conta dessa estrutura tarifária, as pessoas que moram em áreas sem coleta de esgoto não sofrem apenas com a falta desse serviço, mas também com o fato de ter de pagar por ele.
Especialistas contestam a lógica adotada pela Sabesp. Segundo eles, o custo operacional da coleta e tratamento do esgoto é superior ao do tratamento e distribuição da água. Não haveria motivo técnico para a cobrança de valores iguais.
Há municípios que adotam modelos de conta muito mais justos e transparentes. É o caso de Belo Horizonte e de outros 232 municípios que recebem serviços de esgoto da Copasa, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais. Os moradores dessas cidades pagam somente pelos serviços que recebem. As contas detalham os valores relativos ao abastecimento de água, à coleta e ao tratamento de esgoto.
Além do detalhamento das contas, a Copasa adotou outras práticas mais avançadas em relação a suas congêneres de outros Estados. É o caso de sua preocupação com a proteção das áreas de mananciais onde faz a captação de água. Depois de adquirir terrenos nessas áreas, constituiu 14 reservas ambientais, que somam 23.297 hectares.
A falta de transparência do modelo de conta da Sabesp fica ainda mais evidente quando é comparado com aquele que é enviado aos moradores de Paris. Enquanto a conta adotada em São Paulo traz apenas informações gerais, como os dados do consumo e a tabela com o cálculo básico do valor a ser pago, a conta fornecida pela empresa pública Eau de Paris traz o cálculo de forma bastante detalhada. O morador da capital francesa é informado sobre os valores de todos os itens que compõem a tarifa, como a produção e distribuição de água, a coleta de esgoto, o tratamento de esgoto, a taxa para o órgão responsável pela modernização da rede de coleta, a taxa para a preservação dos cursos d'água, entre muitos outros dados.
Lógica invertida
Em sua apresentação, Fernando Santos, diretor-presidente da Odebrecht Ambiental, apontou um problema de origem das tarifas praticadas no Brasil. As contas de água são calculadas ao contrário, em sua avaliação. Primeiro é decidido qual o valor máximo que os titulares do serviço (os municípios) e os reguladores permitem que seja cobrado em função do poder aquisitivo da população, "o que carrega um componente político", e depois são subtraídos os custos com a operação do sistema. Ao final, descobre-se quanto é possível investir. "Quanto mais ineficiente o operador, menos sobra para investir", afirma o executivo.
Na opinião de Ana Lúcia Britto, os investimentos das companhias de saneamento, que se originam basicamente da receita obtida com as tarifas, são insuficientes para que o país alcance a universalização dos serviços de água e esgoto. Segundo a professora da UFRJ, a experiência brasileira não será diferente da dos países que alcançaram a universalização. "Só conseguiram isso com investimentos massivos do Estado", afirmou.
De qualquer forma, os investimentos das companhias de saneamento são fundamentais para a expansão do sistema em suas regiões e para melhoria dos serviços. José Bonifácio de Souza Amaral Filho, da Arsesp, afirmou que a Sabesp vem cumprindo a obrigação de investir pelo menos 13% da receita obtida com as tarifas cobradas no município de São Paulo, de acordo com o contrato de prestação de serviços firmado com a prefeitura.
O total arrecadado na capital paulista impressiona. Entre 2010 e 2014, a Sabesp faturou R$ 27 bilhões em São Paulo, mais que o dobro do que foi arrecadado na cidade do Rio de Janeiro pela Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos). Pelo percentual informado pelo representante da agência reguladora, foram investidos cerca de R$ 3,5 bilhões no mesmo período.
Participação dos municípios é pequena
Os debatedores concordam com a avaliação de que as companhias estaduais de saneamento, criadas durante o regime militar, continuam a ter um papel decisivo no sistema de saneamento existente no país. Apesar de a Política Nacional de Saneamento Básico, criada em 2007, ter determinado que os municípios são os verdadeiros titulares dos serviços de saneamento e responsáveis pelo seu planejamento, as gestões municipais têm um papel secundário nessa discussão.
É o caso de São Paulo. Em 2010, o município publicou seu Plano Municipal de Saneamento Básico. No mesmo ano, formalizou a concessão da prestação de serviços de distribuição de água potável e saneamento para a Sabesp, sociedade de capital misto que atuava até então sem contrato. A regulação e a fiscalização foram delegadas para a Arsesp, autarquia do governo estadual. Desde então, a prefeitura se afastou da discussão do saneamento básico da cidade. Não revisou, por exemplo, o Plano de Saneamento, o que deveria ter ocorrido em 2014, de acordo com as diretrizes da Política Nacional de Saneamento Básico.
O mesmo aconteceu com a maioria dos municípios do país. Cerca de 70% deles têm o serviço de saneamento prestado por empresas estaduais. Outros 25% operam diretamente com empresas municipais e 5% recorreram à iniciativa privada. Talvez mais importante do que esses percentuais, é o fato de as gestões municipais não participarem das discussões sobre os serviços prestados em suas cidades.
Um início de diálogo
Apesar dos debatedores terem criticado a falta de transparência e de participação da sociedade na discussão das tarifas em São Paulo, a roda de conversa se encerrou de forma bastante promissora em relação a esse tópico.
Questionado pelo mediador João Paulo Capobianco se a Arsesp estaria aberta para discutir uma agenda de participação da sociedade na próxima revisão tarifária, prevista para maio do ano que vem, o diretor da agência reguladora respondeu de forma afirmativa. "Acho que se pode criar uma agenda de discussão temática", afirmou José Bonifácio de Souza Amaral Filho. "Vamos então trabalhar para que a próxima tarifa seja mais transparente, mais adequada", completou Capobianco.
No encerramento da roda de conversa, o presidente do Conselho Diretor do IDS lembrou que, nos últimos dois anos, a Sabesp pagou R$ 415 milhões em Imposto de Renda e contribuição social e destinou um valor equivalente para seus acionistas, montante que o Estado abocanhou mais da metade. Lançou então uma provocação para a plateia: "Apesar de terem responsabilidade por não atender um direito humano, São Paulo e o governo federal recebem valores extremamente significativos. Por que o governo federal não reinveste o dinheiro arrecadado da Sabesp? O Estado não deveria fazer o mesmo com os dividendos da Sabesp?".
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