17/04/2017
Artigo publicado na edição de 17/04/2017 do jornal Valor Econômico - http://bit.ly/2ptxCYW
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Está em fase final o processo de renovação da outorga do sistema Cantareira à Sabesp. A partir do dia 31 de maio de 2017, a empresa receberá da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo (DAEE) a decisão sobre a quantidade de água que estará autorizada a retirar diuturnamente desse manancial por um período de 10 anos.
A obtenção dessa autorização é uma exigência da Política Nacional de Recursos Hídricos, que define a água como “um bem de domínio público, dotado de valor econômico”. Como consequência, alguém que pretenda utilizá-la em volumes significativos precisa obter dos órgãos responsáveis o direito de uso, chamado de outorga. O valor econômico, ou seja, o quanto terá que pagar por esse uso, é mensurado e cobrado por outro instrumento: a cobrança pela água, definida e arrecadada pelos Comitês de Bacias Hidrográficas.
Esses instrumentos legais e institucionais foram definidos para assegurar a utilização racional e sustentável desse recurso natural indispensável para a vida e, ao mesmo tempo, garantir a manutenção do equilíbrio ecológico necessário para conservar os ciclos naturais que propiciam a oferta perene de água de qualidade.
Considerando essas premissas, era de se esperar que a outorga para a utilização do sistema Cantareira incluísse condicionantes voltadas à conservação desse manancial, principal sistema de abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), com capacidade de armazenar 982 bilhões de litros. Infelizmente, isso não está se verificando. A ANA e o DAEE não estabeleceram, até o momento, nenhuma condicionante de promoção de ações que assegurem a quantidade e qualidade da água e, tampouco, uma estratégia de proteção e recuperação desse manancial. Dessa forma, o principal objetivo da outorga, que é o de assegurar a manutenção e os usos múltiplos da água, conforme define a legislação brasileira, não está sendo contemplado.
Dados produzidos por um estudo realizado pelo Laboratório de Geoprocessamento da Escola Politécnica da USP em parceria com o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), indicam que na área de drenagem do Sistema Cantareira há pouco mais de 48 mil hectares desmatados em locais considerados ambientalmente frágeis e que devem, portanto, ter sua cobertura florestal restaurada com urgência. Esse montante representa 19% da área total do sistema e corresponderia a um investimento estimado entre R$ 123 milhões e R$ 203 milhões para o plantio e manutenção de cerca de 76 milhões de mudas. São valores irrisórios, frente ao fato de se tratar do principal sistema de abastecimento da RMSP, responsável por atender mais de 5 milhões de pessoas, e de ser um investimento que pode dar oportunidades de emprego e de geração de negócios.
No mesmo estudo, foram identificados 115 mil hectares de cobertura vegetal nativa em boas condições ambientais e que deveriam receber investimentos de fiscalização e controle. Se isso fosse feito, seria possível garantir que essas áreas se manteriam conservadas ao longo do tempo, em benefício da biodiversidade e da manutenção da produção de água no Cantareira.
Os dados produzidos pela Poli/USP e pelo IDS podem representar uma importante contribuição na identificação de ações necessárias para o aumento da resiliência do sistema hídrico da região metropolitana. Investimentos estratosféricos em obras faraônicas para buscar água de outras regiões, enquanto ocorre a destruição cotidiana e acelerada dos mananciais próximos, é o pior caminho a ser percorrido para garantir o abastecimento de longo prazo, além de acirrar os conflitos e disputas por esse bem natural cada vez mais escasso.
Entre os aprendizados que a recente crise hídrica paulista propiciou, está o entendimento de que, para ser resiliente aos extremos climáticos, que já estão em curso, e construir um cenário de segurança hídrica, é urgente dar prioridade à preservação e recuperação dos mananciais. Para se garantir água em quantidade suficiente e qualidade adequada, a gestão das fontes naturais não pode estar à margem do debate. No entanto, é exatamente isso que está ocorrendo no processo de elaboração dos termos da outorga do Cantareira, onde nada foi inserido sobre a gestão ambiental dos mananciais até o momento. Se nada for feito, essa omissão vai se manter até 2027.
A ANA e o DAEE poderiam argumentar que incluir essas condicionantes não estaria entre suas responsabilidades, pois os recursos necessários para recuperação e conservação dos mananciais deveriam ser definidos e arrecadados pelos comitês de bacia, que cobram dos usuários pelo uso da água captada. Embora discordando desse argumento, pois a manutenção da capacidade natural de produzir água é sim uma responsabilidade dos órgãos que emitem a outorga, uma verificação do valor pago pela Sabesp aos comitês de bacias mostra como essa questão não tem sido levada a sério.
Dados da ANA mostram que, no ano de 2015, os pagamentos recebidos pelos comitês de bacias no Estado de São Paulo somaram apenas R$ 78 milhões. Desse montante, a Sabesp desembolsou R$ 43 milhões para nove comitês, valor que se manteve em 2016. Dessa forma, o valor destinado às ações de conservação, recuperação e manutenção dos mananciais utilizados pela Sabesp no ano passado representou 0,3% da receita líquida de R$ 14,1 bilhões obtida pela empresa na venda de água deles retirada. Ou seja, a água que sai das torneiras vale ouro. A que brota nas minas e nascentes, não vale nada.
Não é preciso ser especialista em ecologia ou Prêmio Nobel de Economia para constatar que a Política Nacional de Recursos Hídricos não está sendo cumprida na renovação da outorga do Sistema Cantareira. A consequência, se nada mudar, será o inevitável assassinato da galinha dos ovos de ouro.
João Paulo R. Capobianco, biólogo, é presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) – [email protected] – Guilherme B. Checco é pesquisador do IDS e mestrando em Ciência Ambiental pela USP – [email protected]
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